De acordo com um levantamento do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU Brasil), 64% dos profissionais de arquitetura e urbanismo são mulheres. O dado é do fim de 2021 e, apesar de indicar uma predominância feminina na profissão, os desafios e as dificuldades não diminuem. Na Bahia, a porcentagem de arquitetas representa 56% do total de profissionais, e os dilemas enfrentados ainda fazem jus a uma discussão atual e necessária. Conciliar a vida profissional com a de mãe e ser reconhecida dentro da área de atuação consistem nos dois dos maiores desafios dessas mulheres. Além disso, enfrentar – diariamente e por décadas – o machismo e o preconceito de alguns setores da arquitetura.
Apesar dessas barreiras, há mulheres que resistem e encontram na profissão, nas mais diferentes áreas de atuação, um motivo para felicidade.
Um desses exemplos é o de Flavia Cecilia. Arquiteta natural de Salvador (BA), Flavia adotou ainda no início dos anos 2000 a cidade de Brumado como residência. Com mais de 20 anos na arquitetura, ela conta que “arquitetar é uma vocação” e que escolheu essa graduação por gostar muito de desenhar. “Participar da realização dos sonhos de cada cliente, ver os projetos se tornando uma obra executada, transformando ou criando ambientes é extremamente gratificante”, diz.
Uma das dificuldades encontradas ainda no início da profissão foi, na visão dela, o fato de ter limitações físicas. Ela lembra que isso não a ajudava a conquistar a confiança especialmente de quem trabalhava com obras. “Aos poucos, com disponibilidade de escutar e aprender, conquistei o meu espaço”. Flavia Cecilia conta que “não é raro” que a sociedade enxergue o deficiente físico como alguém incapaz mentalmente. Para driblar o preconceito, a arquiteta traçou um plano: deixar que a conhecessem. “Aprendi desde cedo a aproximar de mansinho, com humildade. Primeiro escutando, para só depois, conversar e, sobretudo, perguntar”, ressalta. Hoje, a profissional trabalha no gerenciamento de um escritório que desenvolve projetos arquitetônicos residenciais e comerciais.
Simultaneamente ao trabalho, ela gerencia obras e garante, com todos os cuidados possíveis, que os projetos dos clientes ganhem vida exatamente como foram solicitados. E é esse também um dos maiores desafios encontrados. Para ela, a arquitetura deve atender as necessidades e gostos dos clientes. “Nem sempre esses gostos agradam ao arquiteto, mas se a parte técnica estiver correta, o importante é suprir as expectativas de quem for fazer o uso do imóvel”. Dentro do ambiente de obras, entretanto, administrar e burlar o machismo demorou um pouco mais. Ela relembra que sempre que havia um homem nas obras, era a ele que todos se referiam. Flavia explica que os colegas de trabalho a ajudaram a quebrar essa barreira. “Quando um pedreiro ou funcionário questionava algo, eles mandavam que tirassem as dúvidas comigo, já que eu sabia de tudo por ali”, conta.
Para além das cidades
Ainda na faculdade, Paula Moreira, militante do Movimento Estudantil e, hoje, arquiteta com mais de 25 anos de atuação profissional, descobriu que o curso não proporcionava apenas a experiência com o lado urbano. Ela viu no meio rural um modo de resistir, aprender e ensinar através do trabalho com a reforma agrária. “Sempre tive vontade de trabalhar na arquitetura social”, pontua. Na visão dela, por “vivermos em uma sociedade muito desigual, em que os serviços não são bem distribuídos”, é necessária uma discussão mais ampla sobre o papel da arquitetura.
Paula, hoje, trabalha e milita em diversas frentes e uma delas é no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), com o planejamento territorial dos assentamentos, e milita em diversas frentes. Além disso, participa no Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas do Estado da Bahia (Sinarq-BA) e de inúmeros debates sobre o direito à cidade. Assim como Flavia Cecilia, Paula também enfrentou situações em que precisou ter mais resiliência e força do que o normal. A profissional – paulista de nascença, mas baiana de coração – tem três filhos e, enquanto fazia o mestrado em geografia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), engravidou de dois. “A partir do momento em que se tem filhos, a mulher, profissionalmente falando, é colocada em uma posição de café com leite. É muito difícil só falar, é preciso provar a todo instante”, relembra.
Mesmo em um momento de dificuldade, já que precisava trabalhar, estudar e criar os filhos, Paula contou com apoio externo e “não deixou a peteca cair”. “Sempre trabalhei, mas senti um pouco de ‘piedade’. O que me ajudou foi a creche da UFBA, foi muito importante para mim”. A arquiteta e urbanista acredita que as coisas “daquela época pra cá” – década de 1990 até hoje – não mudaram para as mulheres. Os desafios, dilemas e problemas se acentuaram. “A questão salarial, de prestação de serviço, de quanto vale em si, isso acaba prejudicando as mulheres. O peso da maternidade e dos filhos é muito maior”, afirma. Por ser uma profissão, segundo ela, “muito corpo a corpo e de um universo masculino, com pedreiros, por exemplo”, é preciso que as mulheres ainda tenham de provar o tempo todo que sabem do que estão falando.
Para contornar a situação, Paula diz que é fundamental se impor, mas que isso depende de pessoa para pessoa. Quando ela começou, ainda jovem em assentamentos, a questão da idade era um fator de problema. “No começo foi difícil, me magoava, quanto mais nova, mais desrespeitada. Isso me machucava, mas com o tempo fui deixando essa mágoa de lado”, argumenta. A experiência adquirida ao longo dos anos fez ela entender que “era assim mesmo o negócio”. Mesmo com atuação voltada quase que exclusivamente para a área rural, a profissional diz que adora uma obra. “De estar ali com a parede quebrando, trocando piso. Eu gosto disso. Às vezes faço algum tipo de trabalho assim, mas não é sempre”, finaliza.